quarta-feira, 23 de março de 2011

Uma marca

Não precisei bater duas vezes para que a governanta abrisse a porta e me encaminhasse silenciosamente à biblioteca. Fazia muitos anos que eu não ia lá e tudo, assim como o tempo, parecia ter envelhecido. Passei os olhos rapidamente por todo o ambiente. Estremeci, com o ar frio e úmido que entrava pela janela semiaberta. Estava ansioso à espera de meu amigo Joseph.
- Ele está tomando banho e como o Sr. deve saber, vai demorar um pouco. Fique a vontade. Disse a governanta.
Sentei por um instante numa poltrona muito antiga, e, diga-se de passagem, nada amigável: estava empoeirada e toda arranhada. Joseph gostava muito de felinos e não era de estranhar que os móveis estivessem naquele estado. Porém, a poltrona, com todos os seus problemas estéticos, permitia um breve descanso. Afinal, a viagem fora longa e severa. O cansaço, somado ao clima silencioso e frio do ambiente, me fizeram cochilar por alguns instantes.
Acredito, na verdade, ter adormecido em meu tempo psicológico, por horas. Pois o que aconteceu comigo depois disso não poderia julgar real. Talvez um sonho ou um delírio, pois coisas assim, digo, sonhos tão reais, aqueles que você sente a sua própria respiração, ouve a própria voz e cansa como se tivesse corrido quilômetros, não acontecem todo dia. O sonho, pesadelo ou delírio, não sei bem como classificar, aconteceu quando ouvi uma voz que surgira atrás de mim:
- Hei, você ai... Você, sentado nessa poltrona suja...
- Eeeuuu? Respondi, tentando localizar de onde viera o som tão próximo a mim. Apesar da voz baixa, quase murmurada, consegui perceber que estava sim atrás de mim, pois foi quase um sussurro em meu ouvido. Mas ao olhar para trás, não vi nada, não havia ninguém ali, apenas eu, a poltrona, a estante coberta de livros empoeirados e uma mesa. Pensei em Joseph. Não, não poderia ser, a não ser que ele tivera feito uma cirurgia na garganta a qual afinara seus sons vocálicos. Depois, ele não tinha super poderes que pudessem o tornar invisível assim de uma hora para outra, ele não recepcionaria desta forma assombrástica seu velho amigo de infância e que há anos não via. A voz era de uma mulher. Antes que eu pudesse continuar minhas tentativas de descobrir a origem do som, fui interrompido:
- Hei, você ai... Você também vê uma marca na janela? Disse a voz, agora em tom mais alto e um pouco mais distante dos meus ouvidos...
- Mmmaaarccaa? Mas que que que marca? Quem é você? Onde você está que não lhe vejo? Gaguejando perguntei.
- A marca seu trouxa, aquela marca bem ali, na janela, está vendo? Disse a voz.
- Não. Respondi, sem tentar mais nada desta vez.
- Ou você é cego, ou você é cego. Você é cego? Perguntou a voz.
- Não. Respondi.
- Tente ficar na mesma posição que eu estou. Disse a voz.
- Posição? Se não consigo nem sequer vê-la, imagine adivinhar sua posição...
- Como você não me vê? Estou bem atrás de você. Na verdade nunca vi um homem falar com uma mulher de costas...
Virei-me rapidamente e não vi nada, absolutamente, nada. Cocei a cabeça, respirei fundo, e a voz feminina continuava tagarelar:
- Ai meu Deus, será que morri? O que estou fazendo aqui?
- Não sei. Eu estava dormindo e fui interrompido com você me chamando...
- Espere, agora estou lembrando... – Disse a voz - Eu estava em minha casa, sentada, tentando decifrar uma marca na janela, quando... quando... Devo ter adormecido e vim parar aqui, será que estou falando com você dentro do meu próprio sonho? Mas aqui não é minha casa, mas também tem uma marca na janela.... Que estranho.... Afinal você está vendo a marca? Ali, bem ali a sua frente. Na janela, no terceiro vidro, à direita, de baixo para cima, está vendo?
- Humm. Deixe-me ver. Ah, sim, estou, agora estou. Que coisa, mas isso não é uma marca, moça.
- Como assim, não é uma marca? É uma marca sim. (Pausa) Ou não?
Não hesitei o riso, comecei a rir sem parar, cheguei a colocar a mão na boca para abafar o tom do meu riso.
- Passou? Disse a voz.
- Passou o que? Questionei.
- O ataque de histeria.... (pausa) Se não é uma marca, o que é então?
- Ai moça, você vê uma marca na janela da sua casa, adormece, sonha, entra no meu sonho, e vem aqui me perguntar o que é essa marca que está tanto na sua casa como aqui? Essa "sua marca" pode estar em todo lugar, em toda parede, em toda porta, em toda janela. Isso é um caramujo, sua trouxa! Desculpe, mas você também me chamou disso antes.
Silêncio no recinto.
- Moça, Moça, cadê você? Será que ela acordou?
- Moço, Moço, acorda. O Sr. está fazendo muito barulho, acho que estava tendo um pesadelo. O Sr. Joseph pediu para me acompanhar até a sala. Ele lhe aguarda lá.
- Ãh? (Foi só o que eu consegui dizer).


(Texto publicado no livro de contos do Sesc)

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