terça-feira, 22 de março de 2011

O dia antes de hoje


- Mãe. 7:10. Hoje é teu dia de levar.
Foi assim que acordei ontem, com um despertador humano, falante, em jejum. Com o coração descompassado, ativo o modo robótico: pular, correr, banheiro, café, uniforme na secadora, - vamos lá pessoal, 7:20! -, banheiro, bolsa, mochila, chaves, abrir o portão, - vamos galerinha, 7:22! -. O trio no carro, o carro na rua e os 8 minutos nos 3 km. Sinais abertos. Sorte na veia. Despacho. Beijo. Respiro. Indago: – aonde mesmo eu vou agora? Hidro! Amadas senhoras da terceira idade. Me sinto um botão em meio às rosas de pétalas secas. Afinal, é o único horário que posso fazer hidroginástica: com a turma da terceira idade. Alonga, inspira, expira, contrai barriga, corre, pula, agora com o macarrão. O botão da rosa está na guerra. O capitão grita, o soldado silencia, positivo e operante. Exigências da vida moderna: se você não fizer uma atividade física, os sinais irão aparecer precocemente e sua bunda vai cair! Maldita lei da gravidade! Maldita crise dos 30! Maldita sociedade erotizada.

Dedos murchos. 15 minutos de banho economizados. Pretensão? Não! Estratégia de custo x benefício. Sem tempo para o tempo psicológico e para reflexões abusivas, se torna necessário voltar. Porque o aqui é real e toda hora é preciso descer. Enquanto muitos “desejam” subir, outros “precisam” descer. E no meu caso desço, mas desço de escorregador, é mais rápido e mais divertido: o vento, a velocidade, a infância intrínseca. Desço, não para o fundo, mas para a base. Afinal, são apenas 9h e a jornada é longa, longa como uma viagem, em que se aprende, se conhece, se encanta, se cansa e se descansa. Tirando o descansa, o resto do dia será uma longa viagem. Portão, bolsa, chaves, é preciso abrir o que há poucos instantes foi fechado. Juntam-se os cacos de vidros espalhados pela casa. Não que algo foi quebrado, mas roupas jogadas e espalhadas, lixo aqui, lixo acolá, a louça do jantar de ontem, tudo são cacos, cada dia menores, porém mais quantitativos. Cheiro de novo, cheiro de limpo, cheiro de rosas, pétalas secas. Muito bom esse produto de limpeza: pétalas secas. É, a hidro foi legal hoje!

Preparo a aula para a turma da tarde, e quando esta acabar, preparo a da noite. O que eu falei mesmo na última aula? No intervalo das 18h eu penso. E toda vez que penso, lembro como Descartes, que existo. Era isso, lembrei. Na última aula eu falava de filosofia e sua relação com a ética, precisei entrar no conceito puro da ética partindo de pressupostos filosóficos para chegar à ética na comunicação. Que viagem! Não falei que a viagem era longa?

Filhos na escola, o meu Pí trabalhando, casa limpa, aulas preparadas. Pausa para o almoço. Pausa encerrada. Encaminhamento para as atividades vespertinas. Beijos, se cuidem, qualquer coisa liguem pro Pi ou pra mãe.

Lá me vou e deixo-me levar para o que mais gosto de fazer: tentar “raspar a tinta com que pintaram os sentidos” dos meus eternos “aborrescentes”, os “sem-luz” como etimologicamente é classificada a palavra aluno. Como podem ser sem luz, se o que mais vejo é uma auréola sob a cabeça de cada um, sem contar os que me ofuscam a visão, de tão iluminados que são? Porém, pintados com várias tintas, com várias mãos. E lá vou eu. Nem sempre consigo raspar a tinta, às vezes faço uma textura, às vezes dou o pincel e a tinta pra se pintarem. Ensinar é uma arte, aprender é ser artista.

Fim da jornada, o bom filho a casa retorna e 3 vozes amorosas, sonolentas e manhosas te confortam: - Mãe, to mal, acho que vai me dar gripe; - Mãe vem ver os desenhos que fiz hoje; - Mãe, me faz dormir!; - Fê, precisa de ajuda?

O amor é incondicional, é dependente, te pinta num quadro e pendura na parede do corredor. Nessa hora eu subo, eu sonho, eu fico lá em cima num balão e penso que preciso raspar também a tinta deles, a tinta velha que um dia EU pintei, como às vezes eles raspam a minha e me mostram a forma deles de pintar. Faço dormir e capoto junto. Prendo-os bem perto do peito e aproveito pra cheirar, pra mimar, pra cantar uma canção de ninar. Aproveito porque o tempo é curto, e sei, e sinto que muito em breve eles se vão, pintar em outro lugar.

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