quarta-feira, 23 de março de 2011

Hamlet e Bartleby


(O fantasma sai da cena, desaparece fundindo-se com a neblina e o ambiente fica ainda mais sombrio. A neblina toma conta do topo do castelo, apenas o canto da coruja e o som do assobio do vento são possíveis de se escutar).

- HAMLET (ajoelhado no chão, com as mãos na cabeça implora aos seus amigos): Saiam todos daqui! Deixem-me só! (Ninguém responde).

- HAMLET: Agora ficaram mudos repentinamente? Ordeno que saiam!

- BARTLEBY: Prefiro não sair!

- HAMLET (ergue-se assustado e vira-se em direção a voz): Quem é você? Outro fantasma proveniente do submundo na tentativa frustrada de revelar-me questões da humanidade tola e livre de princípios?

- BARTLEBY: Prefiro não dizer!

- HAMLET (impaciente, aproxima-se do homem desconhecido): Ah, prefere não dizer! Imagine só. Alguém aqui prefere não dizer-me algo? Seja lá de onde você for, de onde você veio, fantasma peregrino, ordeno que saia daqui. Preciso pensar e caso o senhor prefira não sair daqui, seria bom o senhor ir pensando em me dizer de onde veio, para onde vai, o que ou quem você é!

- BARTLEBY: Prefiro não pensar!

- HAMLET: Meu caro, eu também preferiria não pensar em mais nada, não viver o que todos vivem, não ter o livre-arbítrio para sucumbir destinos. Preferiria não ser o que sou e não precisar mais sentir o que o corpo e a alma sentem. Preferiria ser um louco a optar pelo pensamento mais sombrio e justo que me ocorre no momento... (Tudo fica em silêncio por alguns minutos).

- BARTLEBY: Prefira também, então, não pensar.

- HAMLET: Preferiria, se pudesse... Caso eu prefira, eu sou. Caso não prefira, não mais sou.

- BARTLEBY: Prefira não preferir então.

- HAMLET: Isso eu não posso. Ou uma coisa ou outra. E a primeira opção, meu caro, já está preferida.

- BARTLEBY: Neste caso, prefira o que lhe convém.

- HAMLET: Você ouviu o que me foi revelado?

(o vento sopra ainda mais forte)

- BARTLEBY: Preferiria não ter ouvido.

(a coruja canta mais uma vez)

- HAMLET: Neste caso, você ouviu o que eu ouvi.

- BARTLEBY: Prefiro não dizer.

- HAMLET: Neste caso, prefiro também não mais conversar com o senhor.

(o fantasma reaparece diante da neblina)

- Fantasma: Meus caros, preferiria também não ser este ser e não sentir a dor que me avassala. Mas de que me adianta preferir algo que já havia me sido pré-destinado?

(o fantasma some novamente na neblina)

- HAMLET: Preferiria não tê-lo visto novamente e muito menos ouvir o que ouvi.

(Hamlet ajoelha-se no chão e fixa a neblina).

- HAMLET: Oh Destino repugnante que de forma injusta nos leva o que é de direito! Oh sofrimento incurável que golpeia o coração quando o mesmo ainda bate! Preferiria ser como você meu senhor, que não prefere nada, prefere não sair, prefere não pensar, prefere não dizer. Eu que deveria não preferir algo como as suas preferências. Preferiria que meu honroso rei estivesse aqui comigo, vivo, para preferir comigo a justiça plena (grita Hamlet clamando piedade).

- BARTLEBY: Prefiro continuar preferindo as minhas preferências.

- HAMLET: Deste modo, prefira o que quiser. Seja livre para preferir, meu caro, afinal todos são livres neste mundo obscuro, obsceno e desigual. Enquanto isso eu serei livre para as minhas preferências também.

(ouve-se a música vindo do jantar nos andares abaixo)

- HAMLET (Hamlet aponta para o buraco que os permite ver a festa lá de cima): Prefira ser como eles. Prefira viver o gozo da luxúria, dos contentamentos descontentes, da vida na morte, da ação e da reação, da causa e do efeito. Vamos, junte-se aos mortais e quero ver se continuará negligenciando os prazeres preferidos do homem. Vamos, veja e seja como eles.

- BARTLEBY: Prefiro não ver, prefiro não ser.

- HAMLET: Ótimo. Você prefere não ser! Já eu decidi o contrário.

(Hamlet afasta-se de Bartleby e desce rumo aos seus aposentos. Bartlebly continua imóvel na mesma posição desde o início da cena).

- BARTLEBY (fala consigo, num único murmúrio): Ser ou não ser. Eis a questão.

(o vento sopra mais forte, a coruja canta, a neblina cobre Bartleby o qual desaparece repentinamente).


(Texto criado em 2010 (2o semestre) para a disciplina de "Texto poético e dramático" onde criei um diálogo entre HAMLET, de Shakespeare e o personagem BARTLEBY, O ESCRITURÁRIO - Uma história de Wall Street, de Herman Melville.

Melopéia e Logopéia

Melopéia 1

Nem todo verde é azedo, Nem toda rua é sem fim,

Nem todo medo dá medo, Nem toda moça tá afim.

Quem julgaria a resposta? Quem julgaria a questão?

Quem interessa que julgue, Quem quer saber tem razão.


Melopéia 2

Sono sabe, sono cena, sono sente, sono chama.

Sono sinto, sono saca, sente sono, sono cama.


Logopéia 1

Penso que penso e não penso

Penso que pensava, pensei

Pensar é estar doente dos olhos,

Por isso não penso, pensarei.


Logopéia 2

- Anda logo, passa das 10h.

- Por que andar se posso correr?

- Então corra logo e chegarás adiantado.

- Por que adiantar se não vou parecer?

- Então diga que já está indo.

- Pra que dizer se posso gritar?

- Então grite, mas grite em silêncio. Não tô a fim de hoje matar

Havia um chiclete (Parte III)

Vejo, logo escrevo; Lembro, logo escrevo; Sinto, logo escrevo. Mas o chiclete, aquele chiclete, ainda não removi!

(Sexta, 12/03/2010)

Balões no céu


O que irei lhes narrar agora é real. Não sei por que me lembrei deste episódio, mas, são memórias como estas que me transformam no que sou... que me fazem ter histórias para nunca mais parar de contar.... Vamos lá então: Pobre não tem! Nunca viaja de avião e quando viaja, tem que soltar balão. Meus filhos pareciam ter uma hélice no pescoço de tanto que o giravam para um lado e paro o outro. Nunca tinham entrado num avião, então, imaginem a curiosidade dos inocentes. Parecia a cena mais real do êxodo rural. Por motivos logísticos, não conseguimos sentar os 4 juntos. Minha filha sentou ao lado de um casal de simpáticos membros da idade madura, umas 3 fileiras atrás de nós. Eu, meu marido e meu filho, respectivamente nessa ordem, sentamos ao lado de uma empresária, que estava na janela. Até nisso pobre tem azar. Nunca anda de avião e quando anda, pega justo o corredor. Após ouvirmos atentamente todas aquelas instruções da aeromoça, viro para trás e vejo minha filha com os olhos esbugalhados olhando para a máscara de oxigênio, que em caso de emergência serão lançadas sob nossas cabeças. Contive o riso. Olho para meu filho e este se encontra ali imóvel, com a barriguinha explodindo por cima do apertadíssimo cinto de segurança. Dei uma afrouxada antes que fizesse caca logo ali. Decolagem tranquila, todos felizes no céu. Ah, o céu! Era o que meu filho mais sonhara: ver como era por cima das nuvens... Estrategicamente, ele foi se aproximando da mulher na tentativa frustrada de ver as ditas nuvens. Tentei fingir que não ouvi o que ouvi: - Olha! Acho que ali é o Japão. Meu marido mais que depressa responde: - Não Juninho, é a China! E ele responde: - Sério Pi?, Meeee que leguis, os meus amigos não vão acreditar. Nem eu, pensei. Na tentativa de iniciar um cochilo ouço uma voz familiar, em tom super alterado: - Bãe?!?!?!, Bãe?!?!. Me viro para trás e vejo minha filha, em pé, torcendo a cabeça para um lado e para outro, batendo incontrolavelmente nos ouvidos. – Bãe, eu dão dô ouvindo dada. O que dá agondecendo? - Equaliza filha, Equaliza, falei. – Ãh? – Tranca o nariz com a mão e assopra pra dentro guria, ai o ar sai do ouvido. – Ãh?, indaga ela novamente. Foi a única coisa que lembrei de sugerir. Enquanto todos riam da situação, vertiam lágrimas dos olhos da pequena menina desesperada, que continuava: - Bãe, eu dô surda!, Bãe... – Eu só conseguia fazer sinal pra ela falar baixo, até que fui salva pela aeromoça que pacientemente pediu pra ela se sentar, e acalmou a pobre criança. Suspirei de alívio... quando fui expelir o ar num suspiro vejo o Juninho, quase no colo da empresária tentando desta vez, encontrar nossa casa. Olho pro meu marido e vejo um ser inerte, em estado de coma, com a boca aberta, babando na camisa. Terminei de suspirar, olhei para o relógio. Ufa, estamos chegando!

(Quinta, 11/03/2010)

Pronúncias


O y em my tem som de ai. O i de I am não é i, é ai. Já o i de give tem som de i. O a de name tem som de ei. Já em are, o a é a e em sad o a tem som de é. Whathemsôndeú?. Ãh? Prestem atenção: O a tem som de u? (Whatemsomdeú?) No português não. O a tem som de a. Já no inglês nem sempre o a terá som de a, muito menos de u. Mas o u poderá ter outros sons sim, como em excuse-me, onde o cu tem som de kiu. O problema maior das vogais no inglês é esse, dependendo da palavra a pronúncia ganha outro som. Com as consoantes a transição é menor, o que mais ganha força é o R, pronunciado de forma bem paranaense (poRta = DooR): personal computer, keyboard, camera, sorry, teacher, motherboard, are, brown, Chris, or, Chris Brown. - Ok pessoal? Acho que vamos deixar o verbo to be pra aula que vem... Bye bye, good night!.....
...Ninguém respondeu.

(Quarta, 10/03/2010)

Havia um chiclete (Parte II)


Três dias se passaram desde que minha atenção se voltou para um chiclete mascado, que se encontrava no buraco da fechadura da porta do meu carro. Estava na porta do carona. Talvez por esse motivo ainda não fora removido. O que nos faz deixar para amanhã o que pode ser feito depois de amanhã? Pensei no gelo. Mais ai teria que pegar um gelo e ficar como uma idiota pressionando-o por sabe-se lá quantos minutos até a coisa grudenta desgrudar. E... e se não desgrudasse? E se eu parasse de escrever esse texto e fosse lá remover a coisa? Ele continua lá, plugado. Já faz parte do carro. Até que o detalhe rosa combinou. Quer saber, até sexta que vem eu tiro. Pronto, prazo estipulado e anotado.

(Terça, 09/03/2010)

Mulher-Colher


Mulher lembra colher. Todo ano a mesma coisa: mil mensagens por e-mail parabenizando a mulher vitoriosa, guerreira e multifuncional. Só que a Mulher-Colher, moderna e agitada não tem controle remoto para pausar e ficar lendo toda essa baboseira de cartões virtuais recebidos. Ela precisa continuar na maratona e torcer para que o sinal fique vermelho para fazer a maquiagem ou dar uma lixadinha na unha que quebrou. Ah, Mulher-Colher! Até as curvas da colher lembram as curvas da mulher! Mas você não tem tempo para pensar agora, pega logo essa colher mulher, hoje é teu dia D! De fazer o almoço, como em todos os outros dias.

(Segunda, 08/03/2010)

Um domingo corrompido

O visível é o que me falta.... O grito sufocado pede silêncio.... Eu só queria dormir um pouco, entrar em estado de coma e ressuscitar só na segunda.

(Domingo, 07/03/2010)

Relevações

Eles (concentradamente) jogavam cartas quando Clara chegou com aqueles deliciosos bolinhos de chuva.
- Augusto você me ama?
- Ahã. Mas... Por que a pergunta?
- Nada não. Só pra saber...
...... - Cícero você me ama?
- Ahã. Mas... Por que a pergunta?
- Só pra saber...
..... Ninguém me ama, Clara pensou. Despejou os bolinhos na mesa em cima das cartas de baralho e saiu dali, silenciosamente, com a bandeja vazia.

(Sábado, 06/03/2010)

Estacionado


Marcas coloridas, ruas monocromáticas. Carros parados, pessoas supostamente sem compromissos. Duplas, trios, sozinhas. Meninos, meninas, vovozinhas. Pagode em segundo plano, mulheres contemplando desejos superexpostos em vitrines. Um colega passando em marcha atlética, chamo-o pelo nome, mas ele segue, surdo com seu desprotetor auricular. Crianças entram no carro com o filme na mão, sentam e o contemplam.
- Anda logo Mãe!
...Hora de fechar os olhos, parar, e ir embora dali...

(Sábado, 06/03/2010)

Havia um chiclete


Havia um chiclete no buraco da fechadura da porta do meu carro. Que nojeira, pensei. Quem seria o dono da saliva repugnante que expulsara de sua boca a maçaroca elástica e sem gosto? Um skatista, um masoquista, um mendigo ou um manobrista? Uma de salto, uma criança, uma órfã ou uma tança? Havia um chiclete, e bem ali. Logo ali. Tinha o formato de um rosto com boca, nariz e sem olho. Seria a assinatura do vândalo anônimo? Uma mensagem enigmática? Ou a simples exteriorização complexada de um sentimento difícil de ser engolido? Não sei, só sei que havia um chiclete bem ali e EU precisava dar um fim!

(Sábado, 06/03/2010)

Uma marca

Não precisei bater duas vezes para que a governanta abrisse a porta e me encaminhasse silenciosamente à biblioteca. Fazia muitos anos que eu não ia lá e tudo, assim como o tempo, parecia ter envelhecido. Passei os olhos rapidamente por todo o ambiente. Estremeci, com o ar frio e úmido que entrava pela janela semiaberta. Estava ansioso à espera de meu amigo Joseph.
- Ele está tomando banho e como o Sr. deve saber, vai demorar um pouco. Fique a vontade. Disse a governanta.
Sentei por um instante numa poltrona muito antiga, e, diga-se de passagem, nada amigável: estava empoeirada e toda arranhada. Joseph gostava muito de felinos e não era de estranhar que os móveis estivessem naquele estado. Porém, a poltrona, com todos os seus problemas estéticos, permitia um breve descanso. Afinal, a viagem fora longa e severa. O cansaço, somado ao clima silencioso e frio do ambiente, me fizeram cochilar por alguns instantes.
Acredito, na verdade, ter adormecido em meu tempo psicológico, por horas. Pois o que aconteceu comigo depois disso não poderia julgar real. Talvez um sonho ou um delírio, pois coisas assim, digo, sonhos tão reais, aqueles que você sente a sua própria respiração, ouve a própria voz e cansa como se tivesse corrido quilômetros, não acontecem todo dia. O sonho, pesadelo ou delírio, não sei bem como classificar, aconteceu quando ouvi uma voz que surgira atrás de mim:
- Hei, você ai... Você, sentado nessa poltrona suja...
- Eeeuuu? Respondi, tentando localizar de onde viera o som tão próximo a mim. Apesar da voz baixa, quase murmurada, consegui perceber que estava sim atrás de mim, pois foi quase um sussurro em meu ouvido. Mas ao olhar para trás, não vi nada, não havia ninguém ali, apenas eu, a poltrona, a estante coberta de livros empoeirados e uma mesa. Pensei em Joseph. Não, não poderia ser, a não ser que ele tivera feito uma cirurgia na garganta a qual afinara seus sons vocálicos. Depois, ele não tinha super poderes que pudessem o tornar invisível assim de uma hora para outra, ele não recepcionaria desta forma assombrástica seu velho amigo de infância e que há anos não via. A voz era de uma mulher. Antes que eu pudesse continuar minhas tentativas de descobrir a origem do som, fui interrompido:
- Hei, você ai... Você também vê uma marca na janela? Disse a voz, agora em tom mais alto e um pouco mais distante dos meus ouvidos...
- Mmmaaarccaa? Mas que que que marca? Quem é você? Onde você está que não lhe vejo? Gaguejando perguntei.
- A marca seu trouxa, aquela marca bem ali, na janela, está vendo? Disse a voz.
- Não. Respondi, sem tentar mais nada desta vez.
- Ou você é cego, ou você é cego. Você é cego? Perguntou a voz.
- Não. Respondi.
- Tente ficar na mesma posição que eu estou. Disse a voz.
- Posição? Se não consigo nem sequer vê-la, imagine adivinhar sua posição...
- Como você não me vê? Estou bem atrás de você. Na verdade nunca vi um homem falar com uma mulher de costas...
Virei-me rapidamente e não vi nada, absolutamente, nada. Cocei a cabeça, respirei fundo, e a voz feminina continuava tagarelar:
- Ai meu Deus, será que morri? O que estou fazendo aqui?
- Não sei. Eu estava dormindo e fui interrompido com você me chamando...
- Espere, agora estou lembrando... – Disse a voz - Eu estava em minha casa, sentada, tentando decifrar uma marca na janela, quando... quando... Devo ter adormecido e vim parar aqui, será que estou falando com você dentro do meu próprio sonho? Mas aqui não é minha casa, mas também tem uma marca na janela.... Que estranho.... Afinal você está vendo a marca? Ali, bem ali a sua frente. Na janela, no terceiro vidro, à direita, de baixo para cima, está vendo?
- Humm. Deixe-me ver. Ah, sim, estou, agora estou. Que coisa, mas isso não é uma marca, moça.
- Como assim, não é uma marca? É uma marca sim. (Pausa) Ou não?
Não hesitei o riso, comecei a rir sem parar, cheguei a colocar a mão na boca para abafar o tom do meu riso.
- Passou? Disse a voz.
- Passou o que? Questionei.
- O ataque de histeria.... (pausa) Se não é uma marca, o que é então?
- Ai moça, você vê uma marca na janela da sua casa, adormece, sonha, entra no meu sonho, e vem aqui me perguntar o que é essa marca que está tanto na sua casa como aqui? Essa "sua marca" pode estar em todo lugar, em toda parede, em toda porta, em toda janela. Isso é um caramujo, sua trouxa! Desculpe, mas você também me chamou disso antes.
Silêncio no recinto.
- Moça, Moça, cadê você? Será que ela acordou?
- Moço, Moço, acorda. O Sr. está fazendo muito barulho, acho que estava tendo um pesadelo. O Sr. Joseph pediu para me acompanhar até a sala. Ele lhe aguarda lá.
- Ãh? (Foi só o que eu consegui dizer).


(Texto publicado no livro de contos do Sesc)

Monólogo interior


Mordeu os lábios mais uma vez. O gosto do vermelho já tinha sido engolido outras vezes. Centenas, talvez. Já perdera a conta de quantas vezes o ritual fora dolorosamente praticado. Muda na essência, nua na existência. Por que tudo precisava terminar assim? Por que o desejo constante de felicidade absoluta sempre fora interrompido? Talvez porque sempre desejava o que não tinha e quando tinha o que desejava, se entediava, se frustrava, se feria e passava a desejar outra coisa. É inevitável dizer que nunca fora feliz. Ou, que nunca fora feliz com o que teve, ou com aquilo que tinha, com aquilo que era. Mas, era tarde para pensar nisso tudo outra vez. Olhou para baixo e o movimento que se passara tonteou-lhe os sentidos. Afinal, não havia mais sentido para quem sempre teve uma vida preto e branco. Pensou em Pascal quando dizia que “Todo homem quer ser feliz, inclusive o que vai se enforcar”. Maldito Pascal, pensou. - Eu não vou me enforcar, só estou pensando em pular! Olhou mais uma vez para baixo... pensou... pensou... Os pés iam se afastando... A idéia da morte lhe estremeceu, como nas outras vezes. Nesse momento, concentrada, decide, mais uma vez, não decidir. O silêncio nesse momento é corrompido quando uma voz a assusta: - Ei! É Você? – O que você está... estava olhando? Murmura a voz. Tarde demais. No julgamento dele, ela deu fim à própria vida.
(Texto publicado no livro de contos do Sesc)

A vida na morte

O vestido, cor de cemitério, estava inerte. Pensou usar no enterro do pai. Será normal pensar no que usar num momento como este? Pois ela pensou. Pensou e usou. Pensou também nos óculos escuros e no batom de sangue. Pensou no colar enforcante, e no sapato fura bicho, e no solitário que herdara da vó, solitária. Solitária e viva. Olhou pela última vez no espelho, parecia atriz de cinema, como seu pai queria que fosse.

(Texto publicado no livro de Contos do Sesc)

Presentes

Ela chega e distribui os presentes.
Para o irmão, uma lata azul de menino.
Ele gosta.
Para a mãe, um porta-canetas rosa de menina e um saquinho de incensos coloridos.
Ela adora.
Para o pai, um porta-jóias branco de menino.
Ele não tem jóias.


(Texto publicado no livro de Contos do Sesc)

terça-feira, 22 de março de 2011

O dia antes de hoje


- Mãe. 7:10. Hoje é teu dia de levar.
Foi assim que acordei ontem, com um despertador humano, falante, em jejum. Com o coração descompassado, ativo o modo robótico: pular, correr, banheiro, café, uniforme na secadora, - vamos lá pessoal, 7:20! -, banheiro, bolsa, mochila, chaves, abrir o portão, - vamos galerinha, 7:22! -. O trio no carro, o carro na rua e os 8 minutos nos 3 km. Sinais abertos. Sorte na veia. Despacho. Beijo. Respiro. Indago: – aonde mesmo eu vou agora? Hidro! Amadas senhoras da terceira idade. Me sinto um botão em meio às rosas de pétalas secas. Afinal, é o único horário que posso fazer hidroginástica: com a turma da terceira idade. Alonga, inspira, expira, contrai barriga, corre, pula, agora com o macarrão. O botão da rosa está na guerra. O capitão grita, o soldado silencia, positivo e operante. Exigências da vida moderna: se você não fizer uma atividade física, os sinais irão aparecer precocemente e sua bunda vai cair! Maldita lei da gravidade! Maldita crise dos 30! Maldita sociedade erotizada.

Dedos murchos. 15 minutos de banho economizados. Pretensão? Não! Estratégia de custo x benefício. Sem tempo para o tempo psicológico e para reflexões abusivas, se torna necessário voltar. Porque o aqui é real e toda hora é preciso descer. Enquanto muitos “desejam” subir, outros “precisam” descer. E no meu caso desço, mas desço de escorregador, é mais rápido e mais divertido: o vento, a velocidade, a infância intrínseca. Desço, não para o fundo, mas para a base. Afinal, são apenas 9h e a jornada é longa, longa como uma viagem, em que se aprende, se conhece, se encanta, se cansa e se descansa. Tirando o descansa, o resto do dia será uma longa viagem. Portão, bolsa, chaves, é preciso abrir o que há poucos instantes foi fechado. Juntam-se os cacos de vidros espalhados pela casa. Não que algo foi quebrado, mas roupas jogadas e espalhadas, lixo aqui, lixo acolá, a louça do jantar de ontem, tudo são cacos, cada dia menores, porém mais quantitativos. Cheiro de novo, cheiro de limpo, cheiro de rosas, pétalas secas. Muito bom esse produto de limpeza: pétalas secas. É, a hidro foi legal hoje!

Preparo a aula para a turma da tarde, e quando esta acabar, preparo a da noite. O que eu falei mesmo na última aula? No intervalo das 18h eu penso. E toda vez que penso, lembro como Descartes, que existo. Era isso, lembrei. Na última aula eu falava de filosofia e sua relação com a ética, precisei entrar no conceito puro da ética partindo de pressupostos filosóficos para chegar à ética na comunicação. Que viagem! Não falei que a viagem era longa?

Filhos na escola, o meu Pí trabalhando, casa limpa, aulas preparadas. Pausa para o almoço. Pausa encerrada. Encaminhamento para as atividades vespertinas. Beijos, se cuidem, qualquer coisa liguem pro Pi ou pra mãe.

Lá me vou e deixo-me levar para o que mais gosto de fazer: tentar “raspar a tinta com que pintaram os sentidos” dos meus eternos “aborrescentes”, os “sem-luz” como etimologicamente é classificada a palavra aluno. Como podem ser sem luz, se o que mais vejo é uma auréola sob a cabeça de cada um, sem contar os que me ofuscam a visão, de tão iluminados que são? Porém, pintados com várias tintas, com várias mãos. E lá vou eu. Nem sempre consigo raspar a tinta, às vezes faço uma textura, às vezes dou o pincel e a tinta pra se pintarem. Ensinar é uma arte, aprender é ser artista.

Fim da jornada, o bom filho a casa retorna e 3 vozes amorosas, sonolentas e manhosas te confortam: - Mãe, to mal, acho que vai me dar gripe; - Mãe vem ver os desenhos que fiz hoje; - Mãe, me faz dormir!; - Fê, precisa de ajuda?

O amor é incondicional, é dependente, te pinta num quadro e pendura na parede do corredor. Nessa hora eu subo, eu sonho, eu fico lá em cima num balão e penso que preciso raspar também a tinta deles, a tinta velha que um dia EU pintei, como às vezes eles raspam a minha e me mostram a forma deles de pintar. Faço dormir e capoto junto. Prendo-os bem perto do peito e aproveito pra cheirar, pra mimar, pra cantar uma canção de ninar. Aproveito porque o tempo é curto, e sei, e sinto que muito em breve eles se vão, pintar em outro lugar.